Arquivo mensal: março 2017

FALANDO DE DEUS E ERRANDO FEIO…

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Perguntaram a Rubem Alves: Qual seria a sua resposta se uma criança de dez anos de idade lhe perguntasse o que é fé? – “Usaria uma metáfora poética para dizer o que é fé. Fé é aquilo que uma pessoa que voa de asa delta tem de ter no momento de se lançar no espaço vazio, do alto. Sem medo. Ter fé não é acreditar em seres do outro mundo, anjos, céu, inferno e nem mesmo no ‘deus’ que sai da boca dos homens. Ninguém precisa do diabo para acreditar em Deus. Fé é uma atitude perante a vida, intraduzível em palavras. Sobre essa confiança nos lançamos às incertezas. A fé só existe diante do abismo das incertezas”. Incerteza não é dúvida… incerteza é querer compreender a resposta-padrão do fundamentalismo religioso. Ou compreender as questões sobre o homem, sobre o mundo, sobre Deus, além das âncoras da ortodoxia doutrinal.

Podemos entender Deus, quando o vemos separado de todas as imagens construídas sobre o que não se pode dizer, porque não há palavras ou línguas sagradas que possam defini-lo. Nem a Bíblia!, onde os escritores apresentam Deus de muitas maneiras, conforme suas crenças: ora nos poemas de fé, ora na boca de contadores de histórias ancestrais, ora pelos profetas, ora pelos sacerdotes, ora pelos guerreiros sanguinários que não hesitaram em exterminar velhos, mulheres indefesas, crianças, para tomar terras e riquezas de outros povos… São modos e crenças para descrever Deus conforme suas necessidades. Porém, todas as vezes que lidamos com a beleza, a misericórdia, o amor e a bondade, estamos lidando com o nome sagrado de Deus. Na Bíblia, os evangelhos são mais claros, quando Jesus descreve-o como a realidade acima de todas as realidades. Jesus chamou-o de Paínho… O que é mais real para uma criança que seu paizinho? Ou sua mãezinha?

DEUS COMO SÍMBOLO DE PODER É UM EQUÍVOCO
Dizer que Deus é um espírito imutável, símbolo de poder, de sabedoria, de santidade suprema, falar que Ele é a verdade, que é onipresente, onisciente, é o jeito humano de desenhar uma imagem, apenas. Alguns desenham essa imagem como um juiz implacável, ou como um tirano torturador de chicote na mão; outros o desenham como um velhinho sentado num trono celestial mandando anjos fazer o serviço de segurança e proteção de cada um de nós; e outros, como um pai amoroso, complacente, que sempre tira por menos as estripulias dos filhos desobedientes. Pois é, nós apenas desenhamos o que pensamos. Nada tem a ver com a experiência das pessoas sobre o que realmente Deus deveria ser para elas. Por que recusamos um desenho que mostre Deus solidário, em fraqueza, sofrendo diante da imensa maldade praticadas pelos homens e mulheres? Desculpe, mentiria dissesse que você nunca pensou nisso, não é verdade? Através do próprio Jesus, que conhecemos e reconhecemos muito bem como o filho de Deus — ninguém foi tão claro quanto ele, quando descreveu seu Pai como Deus compassivo, bondoso, terno, misericordioso, capaz de estender sua Graça ao mais irresponsável esbanjador das riquezas, graças que nos foram entregues, ao invés de compartilhá-las com os irmãos. O Evangelho antigo fala muito bem do Pai que sofre e chora com os sofredores, sentindo as dores do mundo. Estou com Jesus e não abro. Ele o chamou de Paínho, como se fosse um baianinho lá de Caculé. Quer dizer, Deus é justo na distribuição das dádivas do amor, e terno, ao mesmo tempo.

NÃO DUVIDO DE DEUS, MAS DAS DOUTRINAS SOBRE DEUS
Uma velhinha de voz trêmula, pele cheia de rugas pediu a um sábio que era ouvido por um grupo: “Fale-nos sobre Deus…”. Fez-se silêncio. Olhou para o vazio. Vagarosamente, um sorriso foi-se abrindo no rosto do apóstolo. “Quantas pessoas aqui na minha tenda estão pensando no ar?”, ele perguntou. “Por favor, levantem uma mão…” Ninguém levantou a mão. Ninguém está pensando no ar. Ninguém nem sabe direito o que é o ar. E, no entanto, todos nós o estamos respirando. O ar é a nossa vida e não precisamos pensar nele e nem dizer o seu nome para que ele nos dê os cheiros e os sabores da vida (Rubem Alves, “Perguntaram-me se acredito em Deus”, 2010). Só quem duvida utiliza os desenhos sobre Deus.

A dúvida sobre a existência de Deus é como uma onda vista de longe, no mar. Mansa à distância… pouco a pouco ela se aproxima. E, de repente, é um maremoto, um monstro espumante, babando, capaz de cobrir alguém e sufocá-lo. Alguém que se afoga em dúvidas só pensa no ar. Deus só é assim, sufocante, para quem duvida. Não é preciso pensar nele e pronunciar o seu nome. Ao contrário, quando se pensa nele o tempo todo,  é porque está se afogando nas ondas da dúvida…  “Deus é como o vento”, disse João, também. Ele foi um dos escritores do Evangelho. Sentimos na pele quando ele passa, ouvimos a sua música nas folhas das árvores e o seu assobio nas gretas das portas. Mas não sabemos de onde vem nem para onde vai. E nem adianta perguntar…

Derval Dasilio [*][*][*][*]

 

MAIS CURTAS… [5]

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[*][*][*]  DEUS COMO EXPRESSÃO DA ALMA PROFUNDA [*][*][*]
Gaston Bachelard lembrava: é preciso descer ao fundo do ser, sem preocupar-nos com a tagarelice da dúvida. A alma em devaneios antigos e recentes emerge das profundidades, reconciliando o passado com o presente. Quanto mais profundo é o ser, mais luzes serão necessárias para iluminar os abismos da existência. Citando Henri Bosco, disse também: “para exprimir a alma profunda do ser, me vinha a ilusão de não mais encontrar-me no mundo real, composto de limo, pássaros, plantas e arbustos vivos, no próprio seio da alma, cujos movimentos e calmarias se confundem com minhas variações interiores”.

Ocorreu uma coisa com o profeta Elias, que procurava intensamente a experiência de Deus, orando. Então, uma voz lhe falou: “Sai de onde estás e coloca-te diante da montanha. Um terrível furacão deslocava a rocha e quebrava os rochedos,  mas Deus não estava no furacão. Depois, houve um terremoto que abria fendas no solo, mas Deus não estava no terremoto. Em seguida, um incêndio de grandes proporções, mas Deus não estava no fogo. Depois do fogo soprou uma brisa mansa, cuja suavidade era incomparável. E, então, lá estava Deus”
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A história sugere que Deus é um sopro leve e suave, na experiência que alcançamos de sua bondade, ternura, misericórdia e cuidado. Sugere coisas importantes para a nossa espiritualidade, tantas vezes submetida a furacões, verdadeiros terremotos, os quais abalam nossas estruturas a ponto de fazer-nos sucumbir; incêndios que parecem devorar-nos a alma e o ser,ameaçando nossa integridade total. Com paciência, poderemos observar que os mesmos estrondos que uma peroba de 30 metros faz ao ser derrubada, em segundos, é o contrário do silêncio da floresta que demora séculos para formar-se. Em segundos, um barulho ensurdecedor. Em séculos, um silêncio que abriga gerações de pássaros; de árvores, flores e frutos. Um silêncio que faz crescer o respeito à natureza, o amor à beleza. Principalmente, na humildade diante do infinito e das coisas eternas. Devemos sentir-nos como parte dessas realidades.
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UM GUIA PARA A AVENTURA NO INTERIOR DA ALMA HUMANA
A aventura interior nos faz lembrar da presença do Pai de todas as coisas, em tudo que nos cerca. Aprendemos que não podemos transferir indefinidamente o que nos faltou desde que nos tornamos conscientes de nós mesmos no mundo. Neste momento podemos sentir o quão importante é compartilhar a realidade do outro ser, do todo, e de Deus, que é a maior das realidades. Deus é uma grandiosidade acima de qualquer grandeza. Não podemos encher-nos de grandeza, envolvidos pela megalomania da razão, diante da realidade maior, que é o Pai de toda a criação. A palavra de Jesus ensina: “aprendam a observar estas coisas, comigo, que sou manso e humilde”.
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O que um budista indiano chama “ahimsa” um israelita bíblico, como Jesus, chamaria de “rahamim”. É a mesma atitude de compaixão, originalmente “não-machucar” o outro. Uma atitude que se sobrepõe à vontade de dominar o outro a qualquer custo, pisar no pescoço de alguém para passar à frente, entrar na realidade do outro para dominá-lo. O hebreu usa a palavra “rahamim” (“ter sensibilidade, sentimentos”, “ter entranhas”, “ter coração”: o coração é sede dos melhores sentimentos, pensa o israelita bíblico), para identificar a compaixão de Deus pelo oprimido, pobre, aflito, despojado, sem-posses, sem-nada. Deus vê seus filhos com extremo cuidado, acolhendo-os sempre com amorosa compaixão.
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Os planos do ser-pessoa são diferentes, por si mesmos, em suas variedades, manifestações, diferenças e diversidades. É preciso reconhecer a beleza do ser em si mesmo, e respeitá-lo. Ser unido com o Pai, como Jesus disse (“onde eu estou, quero que vocês estejam”), passa a ser o mais importante que tudo. Isto é, como disse Jesus, “eu e o Pai somos um, e vocês devem ser unidos conosco, nos gestos e nas atitudes”. Jesus quis compartilhar as qualidades paternais de Deus com seus irmãos, que somos nós, no relacionamento com todos os outros, indistintamente, sejam quais forem aqueles outros.
Derval Dasilio